Mas que raio de manhã, tudo a meio caminho mas pouco ou nada resolvido.
Finalmente sentei-me para almoçar.
Entre uma porrada de merdelhices que tinha para resolver de manhã, acabei por andar o tempo todo de um lado para outro e parece que pouco fiz … um desalento.
Enquanto acalmava-me desta manhã improdutiva, fui ficando cada vez mais consciente de onde estava e quem estava ao meu redor.
Já há mais de meia hora, tinha entrado no restaurante “O Sino”, numa das várias ruas paralelas de Campo de Ourique.
É um restaurante tradicional, com azulejos de repetição até meia altura das paredes da sala, onde se juntam trabalhadores e famílias locais para almoçar durante os dias de semana.
Este tipo de azulejos deve ter estado na moda lá pelos idos anos setenta e aqui ficaram. Juraria que já tinha visto iguais não sei onde.
Na zona onde não havia azulejos, havia quadros cujas imagens devem ter sido recortadas de revistas de viagens. Quanto às respetivas molduras e vidros, talvez não fosse má ideia limparem a gordura neles acumulada, afinal de contas estão num restaurante.
Começava agora a sentir um burburinho de muitas conversas cruzadas e o indelével cheiro de sardinhas assadas que me tinham atraído até aqui.
De entre as várias conversas cruzadas, duas vozes mais próximas identificavam-se como graves e serenas. Eram de dois homens mais velhos, sentados na mesa ao lado da minha e começaram-se a fazer ouvir à medida que a minha consciência se aproximava do meu corpo.
Também o meu olhar, que antes via duas figuras translúcidas, focou mais perto de mim e passei a ver as figuras destes homens de forma definida.
Estes homens tinham um ar de para quem o tempo não tem pressa e estavam tão descontraídos que poderíamos pensar que estavam em casa de algum deles.
Pela pouca quantidade de peixe e grande quantidade de espinhas nos seus pratos, percebi que as sardinhas só poderiam estar excelentes.
Mas estes dois homens não davam mostra de terem terminado o almoço e, apesar de estarem repousados em frente aos pratos, de quando em vez lá iam a mais umas garfadas até que a conversa retomava e repousavam os talheres ou os brandiam no ar ao ritmo do que iam dizendo.
Olhei com um pouco mais de atenção à procura de traços familiares entre eles e não encontrei nenhum.
Prefiro pensar que são só amigos e não necessariamente aparentados.
Tive a sensação de que se conheciam há mesmo muito tempo. Não me perguntem porquê, é daquelas coisas que se sente de forma profunda e segura.
Entretanto, fui desviando o olhar, mas não por falta de mais curiosidade sobre os dois homens, antes pelo contrário. Mas não queria ser apanhado embasbacado a olhar para eles.
No entanto, estes dois amigos nem repararam para onde eu olhava ou deixava de olhar embrenhados que estavam num mundo só deles.
Um pequeno encontrão no meu ombro direito trouxe-me de volta ao planeta Terra e o empregado de mesa ali largou duas carcaças e um pratinho com manteigas.
O som desse pratinho ao ser posto na mesa denunciou que o tampo escondido pelo toalhete de papel, era de mármore ou pedra parecida. Simultaneamente, consciencializei-me que já tinha sentido esse frio nos antebraços mal me tinha sentado.
Pão com manteiga. Aí está uma entrada a que não resisto.
“A minha nora é muito boa moça mas é muito chata. Caramba, não deixa o miúdo fazer nada, anda sempre em cima dele” disse o homem que estava virado para mim e, talvez, o mais falador.
“Então o teu filho como está?” perguntou o amigo de sorriso rasgado e sem dar continuidade ao que, sem pensarmos mais profundamente, poderia parecer uma crítica que o amigo tinha feito.
Sem pressa de responder, o homem barbudo, barrigudo e olhos pequeninos, ia comendo as suas sardinhas quando respondeu qualquer coisa como “está porreiro” ou algo assim, a contar pela forma natural como o disse.
Saboreei a cena vivida entre estas duas almas que usufruíam da companha mútua que era tudo o que necessitavam.
Afinal de contas, como diz a voz popular, os amigos são a família que escolhemos e, longe de serem perfeitos, têm defeitos diferentes dos nossos.
Como um alfinete fino e comprido, lembrei-me dos meus afazeres matinais.
Tarefas que nunca serão recordadas e que, não obstante serem necessárias, lhes damos uma importância e prioridade que não damos aos momentos que recordamos, nos edificam e que acabam por fazer parte da nossa história.
Com os amigos de longa data bocejamos e sentamo-nos de forma confortável, os nossos ombros descontraem-se e a testa perde o franzido que trazia, esquecemo-nos de tudo e pomos os cotovelos na mesa enquanto o tempo passa a correr.
Prioridades invertidas?
Só depende de nós corrigi-las.
Entretanto, vou agarrar-me às sardinhas que o empregado trouxe e que já vão escasseando neste início de outono.
Bem hajam,
David Monteiro.